A convivência com povos amazônicos, indígenas da região do Nhamundá-Mapuera e do Alto Rio Guamá, por mais de quatro anos, permitiu ao linguista e narratólogo Álvaro Fernando Rodrigues da Cunha identificar semelhanças “inesperadas” entre as narrativas dos índios e histórias bíblicas do Antigo Testamento. A partir dessa constatação, Cunha realizou cruzamentos entre as narrativas se utilizando de uma ferramenta que ele denominou “Teoria em cruzamento para oralidade e escrituralidade”. “Estamos diante de uma nova Teoria para estudos na área de ciências humanas e sociais”, garante o pesquisador. “Depois de aprender a língua daqueles povos, percebi similaridades, inclusive temporais, com 17 narrativas bíblicas. Tratando-se de povos isolados e que não possuem escrita com a Bíblia é algo, no mínimo, intrigante”, considera o linguista, que defendeu sua tese de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre o tema em questão.
Ele ressalta que no período em que conviveu com os índios, entre 2002 e 2005, eles viviam praticamente isolados da civilização. “Não tenho receio em dizer que as semelhanças podem ser atribuídas a um ‘elo perdido’”, acredita. Segundo Cunha, as narrativas desses povos que habitam a Amazônia têm muita coincidência com as narrativas bíblicas. “Os relatos estão apenas ‘maquiados’ por outras versões existentes noutras culturas”, relata.
Num período do ano de 2004, Cunha conviveu com os tenetehára que habitam o Alto do Rio Guamá, no ramo Ocidental da Amazônia. Lá também foram encontradas semelhanças com as mesmas narrativas do Antigo Testamento. “Já entre os mawayana, onde convivi por cerca de seis meses, pude constatar 14 narrativas semelhantes”, narra o linguista.
As observações e análises de Cunha junto aos índios tiveram início quando ele decidiu descrever em seu estudo de mestrado, também na FFLCH, a fonologia da língua hakitía. Trata-se de uma língua de origem românica falada pela comunidade judaico-marroquina no norte do Brasil. “A origem do idioma é da Península Ibérica e foi mantida na Amazônia, quando judeus chegaram do Marrocos atraídos pelo ‘ciclo da borracha’, nos séculos 18 e 19”, relata o narratólogo.
Mais tarde, já em seu doutorado, Cunha realizou o estudo Narrativa na (língua judaico-marroquina) hakitía, orientado pelo professor Waldemar Ferreira Netto e apresentado no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH. O pesquisador buscava então suas próprias origens. Mas, ao se deparar com as coincidências nas narrativas optou por analisá-las, principalmente porque tem profundo conhecimento do Antigo Testamento.
Os resultados desses estudos constam no livro Teoria de Cruzamento em Oralidade e Escrituralidade, recentemente publicado. “Quando afirmo se tratar de uma nova teoria é porque as análises convencionais são, basicamente, unilaterais. Em meu estudo utilizei cruzamentos redefinindo o Etos [traços característicos de um grupo, do ponto de vista social e cultural, que o diferencia de outros], o que nos fez entender melhor as realidades das narrativas”, descreve o linguista.
Outro fato relevante foi a questão da temporalidade das narrativas. “Em geral, as narrativas indígenas eram localizadas nas mesmas épocas das narrativas bíblicas”, conta Cunha. Ao questionar os índios sobre onde aprenderam as histórias, todos diziam ter aprendido com seus antepassados.
“Os Tenetehára contam que havia um povo perseguido e outro perseguidor. O povo perseguido só poderia passar para o outro lado do rio (igarapé) se soubesse pronunciar, com exatidão, a palavra ‘pirá’ (peixe), na língua dos perseguidores (mawayana)”, exemplifica o linguista. “À medida que os índios perseguidos enfileiravam-se para atravessar o rio (igarapé), os tenetehára lhes perguntavam como se falava a palavra ‘peixe’. Os perseguidos pronunciavam ‘birá’, em vez de ‘pirá’. Só neste dia os tenetehára mataram toda a tribo dos perseguidos”, descreve. Segundo Cunha, trata-se da mesma história bíblica de Juízes 12:5 e 6 – “Então lhe diziam: Dize, pois, Chibolete; porém ele dizia: Sibolete; porque não o podia pronunciar bem; então pegavam dele, e o degolavam nos vaus do Jordão; e caíram de Efraim naquele tempo quarenta e dois mil.”
O linguista afirma que a teoria aplicada em seu estudo pode ser ferramenta útil para as ciências humanas e sociais descreverem e entenderem mais profundamente a noção de cultura, hábitos fundamentais, comportamento, valores, ideias e crenças característicos de uma determinada coletividade, época ou região. “A teoria pode ser aproveitada em outras áreas do conhecimento como direito, psicologia, jornalismo, história, geografia, antropologia, dentre outras. O próximo passo é saber quais as astúcias que as narrativas orais escondem de nós”, conclui.
(Exame)
Nota: Por que evitam ir às últimas consequências e perguntar de onde teriam vindo essas narrativas semelhantes? Se fosse um ossinho fossilizado, com certeza inventariam dezenas de hipóteses. E o que dizer dos relatos do dilúvio universal encontrados em mais de 200 culturas espalhadas pelo mundo, e que coincidem em detalhes mínimos? A tradição adâmica também é evidência de um relato original que se espalhou e foi preservado nas culturas – muitas das quais há muito tempo isoladas. Dizer que todas essas narrativas convergentes se tratam de mitos dos povos é forçar demais a barra. Pelo visto, os evolucionistas que negam a historicidade dos relatos bíblicos terão que revisar seus preconceitos.
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