Conhecemos o quadro da Última Ceia de Salvador Dali: o Cenáculo alto, Jesus e os discípulos, o pão partido, o vinho vermelho translúcido... O autor fez as paredes do Cenáculo, enormes, de vidro, como nunca foram na realidade. E, da singeleza da Eucaristia, o olhar vai mergulhando para fora, vendo o mar, as praias, as montanhas, o mundo, o universo... tudo isto transfigurado por um abraço de um corpo humano/divino enorme, braços abertos, acolhendo a cena toda... Como se Ele ficasse transparente e a gente passasse a ver o mundo inteiro através d’Ele.
Um sintoma típico da pós-modernidade é o sentimento de orfandade: o universo já não é mais um útero, mas um deserto. Percebemos que temos perdido o contato e a comunhão com o cosmos, com o chão, com os animais, com as aves, com os rios e oceanos... e isto tem provocado em nós toda espécie de mal-estar, de doenças, de insegurança, de ansiedade. Somos “seres urbanóides”, cercados de cimento e asfalto por todos os lados. Quando perdemos o contato com a natureza e nos distanciamos da terra, nos tornamos insensíveis, frios e incapazes de compaixão e cuidado.
A Última Ceia de Jesus com os apóstolos revela que a Criação é obra de Deus e exige uma aproximação contemplativa. Quanto mais proximidade e intimidade com a terra, mais profunda é a comunhão com todos os seres.
Quando o ser humano não percebe o seu parentesco com a Criação, vive numa casa-prisão cujas paredes lhe impedem uma comunhão cósmica. Ao contrário, quando sente a presença de Deus em todas as coisas e entra em comunhão com toda a natureza, seu coração se emancipa e se dilata, sua mente se abre, seus horizontes se ampliam... O Universo passa a ser o seu grande lar, onde ele encontra o coração de Deus. Em tudo pode-se vislumbrar um lampejo da divindade. Com isso, a eucaristia revela seu caráter universal que nos permite viver uma espiritualidade ecológica e nos ensina a abraçar a Criação e o Deus do Univer-so. A comunhão com o Universo é ponto de partida e de chegada da Eucaristia.
A Terra nos encanta e nos convida, constantemente, à admiração, ao cuidado e à veneração.
A veneração, por sua vez, nos leva a caminhar pela Terra "tirando-nos as sandálias", como Moisés diante da sarça ardente (Ex 3, 2). Estamos mergulhados no “grande Templo” formado por uma multiplicidade de notas, sons, sinais e mensagens diferentes. Formamos uma realidade complexa, diversa e única. Uma pe-dra, uma cascata, uma nuvem caprichosa, um pássaro, convertem-se em veículos de sabedoria. É neces-sário que nos eduquemos para captar a mensagem que eles nos transmitem e aprender a viver a comunhão com tudo o que nos rodeia. Todo o Cosmos é como um grande livro que precisa ser lido.
O dom eucarístico, portanto, não pode ser reduzido a um simples rito desligado das demais relações envolventes (com Deus, com os outros e com toda a Criação).
“Como o pão é um só e o mesmo, formamos todos um só corpo” (1Cor. 10, 14-22).
Pela Eucaristia Deus abraça todas as suas criaturas e as envolve no mistério pascal de seu Filho Jesus, de modo que, de Eucaristia em Eucaristia, todo o Cosmos vai sendo “cristificado”.
A partir da Eucaristia tudo é sagrado. Como já afirmava São Paulo: "Tudo foi criado por Ele e para Ele" (Col 1, 16). Tudo é uma grande liturgia cósmica. O universo é um grande sacramento e se transforma no espaço e no lugar de manifestação da divindade. Tudo é sagrado; a Matéria é sagrada; a Natureza é espiritual, porque é Templo de Deus. Todos os lugares da mãe-Terra pelos quais caminhamos são “territó-rios sagrados”. Segundo a Bíblia, a Terra é um jardim onde Deus tem prazer em passear.
O Universo inteiro é um imenso altar cósmico sobre o qual celebra-se, diariamente, a liturgia da vida; ao mesmo tempo, ele é o lugar no qual podemos contemplar e acolher a presença do Criador, a harmonia dos seres, a comunhão das criaturas. Sobre o altar do mundo se entrelaçam o céu e a terra, de modo que toda a Criação é iluminada pela Eucaristia.
Todas as criaturas celebram a grande festa, ao redor da Mesa cósmica (Última Ceia – Ceia universal).
A vivência da Última Ceia nos proporciona uma fecunda experiência cósmico-ecológica. Sentimo-nos conduzidos pela força do Espírito que alimenta as energias do universo e a nossa própria energia vital e espiritual. Ao mesmo tempo ela nos convida a nos posicionarmos de maneira diferente no Universo e levarmos a sério a responsabilidade que temos sobre a Criação.
Sentir que somos Terra faz-nos ter os pés no chão da vida e viver em comunhão com a comunidade das criaturas. A hora é de somar em prol da vida e no cuidado de todos os seres da Terra.
Sentir-nos Terra é mergulhar na comunidade terrenal, todos filhos e filhas da grande e generosa Mãe, que nos prepara a Grande Ceia da Vida.
Em Jesus, Deus se revelou encarnado na história e fez do Universo seu corpo. A presença real de Jesus, no pão e vinho da Eucaristia, nos desperta a reconhecê-Lo presente no coração do Cosmos e da História.
Céu e Terra estão integrados; o finito se faz espaço e revelação do Infinito, e Deus acontece nas relações humanas interpessoais e nos cuidados por tudo que diz respeito à harmonia neste mundo.
Pela Eucaristia, valorização definitiva do universo pela comunhão, somos confrontados com a presença transformadora de Deus em tudo e em todos.
A Eucaristia nos educa no respeito e cuidado para com tudo aquilo que nos cerca. Tudo e todos são sinais do divino, que rejeitam toda forma de dominação e exclusão, exploração e divisão, substituindo-as pelo reverência, compromisso com a vida, confraternização, convivência....
No partir do Pão e no beber do Vinho da Eucaristia, palpita a vida que transcende as fronteiras da morte.
Quem come deste Pão e bebe deste Vinho, compromete-se com a luta contra as forças da morte: egoísmo, violência, indiferença, omissão política, desonestidade na gerência dos bens, descuido nas relações afetivas, isolamento no medo, destruição do meio-ambiente, poluição...
Simbolicamente, na Eucaristia, o pão é partido para significar a doação de Jesus; e ao comermos deste pão, aceitamos ser como o grão de trigo que, caído no chão da história, recebe as energias que vem das profundezas da terra e das alturas do céu.
Num pedaço de pão há o vento que balança as loiras espigas, a noite calma que caiu sobre o campo, o sol ardente que faz germinar e crescer o trigo, a água generosa que possibilitou a vida, a terra que teve de ser arada, o ser humano trabalhando sem parar, a semente que teve de morrer para que viesse a planta, o adubo que foi posto com mãos calosas, o gesto da mão que preparou a massa... A natureza inteira se mobilizou para gerar o pão, que deve ser partido e oferecido com generosidade.
Da mesma forma, toda a Criação foi mobilizada para proporcionar o vinho da alegria e da festa. Diante de nós, sobre o altar, está contido todo o Universo, pronto a se fazer dom e alimento.
Jesus, na Última Ceia, ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, acolhe os dons da Natureza para transmitir sua Vida a toda humanidade; Vida em abundância; Vida que não tem fim...; a Vida num pedaço de pão e num cálice de vinho.
Textos bíblicos: Sl. 104(103) Sl. 65(64) Sl. 136(135) Lc. 22,7-24
Na oração: Num canto do jardim, tendo o horizonte como o altar, a Terra inteira como pão sagrado e o es-
paço formado pelas montanhas como cálice, leia salmos de louvor pela grandiosidade da Criação;
sobre a patena do horizonte, ofereça o inteiro universo com suas galáxias, miríades de estrelas e incontáveis planetas. Mobilize os sentidos para olhar, escutar, tocar, sentir e saborear a beleza de nossa mãe-Terra.
Em seguida, com as mãos trêmulas pelas energias cósmicas que formam a realidade e os lábios incandescentes pelo fogo das palavras sagradas, pronuncie com reverência esta consagração da Terra:
“Terra minha querida, Grande Mãe e Casa Comum!
Finalmente chegou tua hora de unir-te à Fonte de todo ser e de toda vida.
Vieste nascendo para isto, lentamente, há milhões e milhões de anos, grávida de energias criadoras.
Teu corpo, feito de pó cósmico, era uma semente no ventre das grandes estrelas vermelhas que depois explodiram, te lançando pelo espaço ilimitado.
E como expressão nobre da história da vida, nos geraste a nós, homens e mulheres.
Através de nós, tu, Terra querida, sentes, pensas, amas, falas e veneras.
E continuas crescendo, embora adulta, para dentro do universo rumo ao Seio do Deus-Pai e Mãe de infinita ternura. D’Ele viemos e para Ele retornamos com uma implenitude que só Ele pode preencher.
E agora, Terra querida, realizo o gesto de Jesus na força de seu Espírito.
Como Ele, cheio de unção, te tomo em minhas mãos impuras, para pronunciar sobre ti a Palavra Sagrada que o universo escondia e tu ansiavas por ouvir.
“Hoc este corpus meus: Isto é o meu corpo. Isto é o meu sangue”.
E então senti: o que era Terra se transformou em Paraíso e o que era vida humana se transfigurou em vida divina. O que era pão se fez Corpo de Deus e o que era vinho se fez sangue sagrado.
Por isso, de tempos em tempos, cumpro o mandato do Senhor.
Pronuncio a palavra essencial sobre ti, Terra querida, e sobre todo o universo.
E junto com ele e contigo nos sentimos o Corpo de Deus, no pleno esplendor de sua glória”.
(Leonardo Boff)